Depoimentos de familiares e
testemunhas à polícia reconstroem momentos anteriores ao assassinato e
desaparecimento do trabalhador rural Welbert Cabral Costa no Pará
Repórter Brasil
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| Welbert Cabral Costa |
Havia acabado de tomar o ônibus em direção a São
Félix do Xingu, município vizinho a Xinguara, no sul do Pará (PA). O
relógio marcava 7h45 da manhã. A lembrança vinha-lhe com insistência à
cabeça, enquanto seguia o percurso da viagem que lhe tomaria pelo menos
três horas. “Não se mete na minha vida”, repetia para si mesmo a frase
que dirigira, em tom ríspido, ao irmão, César*. Inutilmente, ainda na
rodoviária ele tentara lhe convencer a não retornar para a Fazenda Vale
do Triunfo, onde Welbert Cabral Costa trabalhava como tratorista e aonde
agora voltava para reclamar uma quantia em torno de R$ 18 mil, valor
referente a direitos trabalhistas não remunerados enquanto esteve de
licença por conta de um acidente.
De zombaria, os colegas de serviço chamavam-lhe de “Beliche”, desde
que havia caído do segundo andar da cama do alojamento do trabalho.
Estava no emprego há pouco tempo: começara em maio. Com o braço
machucado, teve de se afastar. Agora que estava de retorno, mal sabia o
trabalhador rural, porém, que deveria dar crédito às suspeitas do irmão.
Welbert seria assassinado na noite daquele mesmo dia, 24 de julho
de 2013, na porteira de entrada da fazenda. Receberia um único e frio
tiro na nuca, aos mesmos moldes de uma execução, após ser impedido de
ingressar no local. Até esta quarta-feira, dia 14, seu corpo continua
desaparecido.
Embora pudesse não saber, lidava com gente poderosa. A Agropecuária
Santa Bárbara Xinguara — dona da Fazenda Vale do Triunfo — tem entre
seus acionistas o Grupo Opportunity, ligado ao banqueiro Daniel Dantas. A
empresa é uma das maiores criadoras de gado para corte do Brasil e já
foi acusada por crimes ambientais, grilagem de terras e trabalho escravo.
Possui hoje mais de meio milhão de cabeças de gado, distribuídas entre
seus 500 mil hectares de terra, uma área equivalente a três vezes o
município de São Paulo. Tanto o Opportunity quanto Dantas aparecem,
entre outros episódios, na Operação Satiagraha, deflagrada no começo de
2004 para investigar um grande esquema de corrupção, lavagem de dinheiro
e desvio de verbas públicas. Além disso, a região, no sul do Pará, é
conhecida pela pistolagem e frequentes ameaças e assassinatos de camponeses.
No entanto, soubesse qualquer coisa sobre o momento de morte, talvez o
ser humano desistisse da vida. Na última vez em que Welbert esteve com a
família, pai, mãe, tio, irmãos, esposa e seus três filhos, o maior com
apenas cinco anos de idade, o irmão já havia lhe avisado, antes de
partir em viagem, sobre os cuidados com uma estranha proposta que
recebera. Um gerente da fazenda informara ao tratorista que negociaria
um acordo referente ao dinheiro por receber na sede da propriedade,
situada na zona rural de São Félix do Xingu (PA). “Ninguém faz acordo no
meio do mato”, alertara César, depois de afirmar que um acerto do tipo
deveria ocorrer no escritório da empresa, logrado em Redenção (PA),
município das redondezas, e não em algum canto escuro de um latifúndio
qualquer.
No ônibus para São Félix, o celular toca. Dessa vez, era a sua irmã
Janaína* quem falava. Insistia no mesmo ponto do irmão, a pedido da mãe.
Seus familiares queriam convencê-lo de desistir da ideia. “Isso tudo tá
muito estranho”, dizia. Sem sucesso. Welbert estava determinado a
seguir em frente. Não haveria por que desistir, afinal, já estava perto;
chegava a São Félix e agora só precisaria providenciar um meio de
transporte até a fazenda. “Prometo voltar amanhã [dia 25 de julho]”,
respondeu-lhe. Encerrou afirmando que poderia ser encontrado em um
número de telefone qualquer e desligou.
Por R$ 100 alugou o veículo de um moto-táxi local. Devolveria a
motocicleta ao proprietário assim que voltasse da fazenda com as
pendências trabalhistas resolvidas. Seria, entretanto, a última vez que
pegaria a estrada vivo. Mais cinco horas de viagem e outras tantas de
discussão à porta da fazenda separavam o tratorista do disparo que
colocaria, contra a própria vontade, um ponto final na reivindicação de
direitos trabalhistas.
Chegou à portaria de entrada da Fazenda Vale do Triunfo às 17h30. “O
senhor não pode entrar. Deram-me ordem para não te deixar passar”, disse
um segurança local, barrando-lhe o acesso. Irritou-se. Viera de
Xinguara (PA) somente para tratar disso. Não poderia ser tão difícil. Só
precisava cobrar o que lhe deviam na sede da propriedade, pegar a moto
para voltar à cidade, devolver o veículo emprestado e então comprar na
rodoviária as passagens de volta para casa. Nada mais, nada menos.
Deveria ser simples. Exaltado, insistiu que tinha de resolver a
situação; que a empresa lhe devia dinheiro; que um gerente da Santa
Bárbara havia lhe chamado até lá para resolver isso; que não era pouca
coisa; que o valor girava em torno de R$ 18 mil; que precisava entrar; e
que não sairia de lá… Em vão. Enquanto Welbert repetia os motivos, o
guarda requisitava apoio pelo rádio.
Um carro surge, e então dois homens descem de uma camionete S-10
branca. Eram Maciel Nascimento e Divo Ferreira. Este parecia carregar
algo protuberante no bolso. Dizia-se na região que costumava andar
armado. Eles continuaram a impedir a entrada de Welbert, e o primeiro
segurança que lhe havia impedido de entrar vai embora. O tratorista
volta a argumentar. O tempo passa. Nada se resolve. A discussão
continua. Ele tinha de resolver a situação. Lembrou à dupla que a
empresa lhe devia dinheiro; que um gerente da Santa Bárbara havia lhe
chamado até lá para resolver as coisas; que não era pouca coisa; que o
valor girava em torno de R$ 18 mil; que precisava entrar; que não sairia
de lá… Anoitecera. Já era 19h, e Welbert então é rendido no escuro. Sua
última lembrança seria um frio pedaço de ferro encostado à nuca.
Viatura policial começa buscas pela área da fazenda, que se estende por 48 mil hectares (Foto: Divulgação)
Testemunha e investigação
A certa distância da portaria da Fazenda Vale do Triunfo, uma testemunha ouvia algo semelhante ao disparo de uma arma de fogo. Ao longe, viu Divo Ferreira baixando o braço com algo em punho e Welbert caído ao chão. Junto ao homem, outra pessoa colocava o Welbert na caçamba da S-10 branca. Os dois entram na camionete e vão embora pela estrada escura. O desaparecimento do tratorista teria se desenrolado nesses moldes, de acordo com os depoimentos — obtidos pela reportagem — de testemunhas e pessoas ligadas ao trabalhador rural cedidos à Polícia Civil do Pará, que segue investigando o caso. Os relatos levantam a hipótese de que o corpo de Welbert teria sido jogado em alguma vala no caminho que liga a cidade ao lugar na zona rural por onde a fazenda se estende.
Nos últimos dias 10 e 11, os policiais realizaram uma diligência nas
imediações da propriedade para procurar pelo cadáver da vítima e provas
do crime.
Segundo o delegado à frente das investigações, Lenildo Mendes
dos Santos, pelo menos duas armas de fogo e cartuchos dos mais variados
calibres foram apreendidos no local. A presença de outras munições
levantou a suspeita da presença de ainda mais armamentos ilegais nas
imediações da propriedade. Divo Ferreira e Maciel Nascimento, acusados
de terem executado o assassinato, estão foragidos. Autoridades pediram
prisão preventiva dos dois. Lenildo acredita no envolvimento de
dirigentes da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara no caso. “Imaginamos
que os mandantes podem ser pessoas de alto escalão”, afirma.
Com colaboração de Stefano Wrobleski
*nomes fictícios para preservar as identidades
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